Espaço de atividade literária pública e memória cronista

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Uma Recordação de Maio...


Maio é um mês sui generis por natureza. Com seus encantos e desencantos, tal como meteorologicamente é de tempo incerto, num período algo misto, de transição, tanto com dias de sol como de chuva, misturando clima ameno, quente e até frio. Lá diz o ditado popular que fraco é o Maio que não rompe uma crossa… querendo dizer, na sabedoria popular, que é ainda tempo frio, pois a crossa era antiga capa de palha de guardar o frio e com préstimo para a chuva.

Ora, é este mês também um tempo de recordações marcantes. Uma das quais, passada num Maio de há sensivelmente cinquenta anos atrás, ainda temos na retina da memória, embora com uma ténue mas ao mesmo tempo profunda recordação. 

Essa lembrança, duma situação verídica e inesquecível passada com o autor, faz parte de um dos contos do livro “Sorrisos de Pensamento” – um pequeno livro, de edição de autor, cuja imagem da capa encima a publicação deste artigo. Livro esse em cujo capítulo quinto (V) foi narrada pessoalmente essa memória de infância do próprio autor. Entre outros contos que descreveram alguns espécimes de acontecimentos personificados a uma região e sua gente… 

Livro de Contos (ESGOTADO) 
Sorrisos de Pensamento - Colectânea de Lembranças Dispersas 
(editado em 2001) 

(…) 

 V - Suave Recordação 

Os muitos anos passados transportam ténue a imagem daquela esbelta moça, transbordante de alegria e de simpatia cativante. Mas mantém-se inalterável o apreço pelo seu apego aos que lhe eram queridos, a sua alegria de viver, a simplicidade com que se fazia ternamente benquista, na sua curta vida ceifada na flor da idade por malfadado quisto... 
O desenlace precipitou-se, de forma brutal, de um dia para outro, num fim de tarde. 
Acompanhada por pessoa da sua confiança, a sua tia Matilde, sem haver prescindido de acompanhamento de uma criança que era sua companhia para todo o lado, a prima Glória do Paço, filha do tio João, prima de que todos os primos e primas gostavam de maneira muito especial, foi procurar remediar um mal que a apoquentava. Aparecera-lhe um quisto. A princípio sem lhe ser dada grande importância, depois dúvida e preocupação, sem no entanto adivinhar a sua extensão. Um inchaço que paulatinamente foi crescendo, coisa que apesar dos mais diversos tratamentos, incluindo receitas do sôr Manel Abreu da farmácia, dotado nessas mezinhas boticárias, não havia meio de desaparecer ou diminuir ao menos. Esgotadas as tentativas médicas, teve conselhos amigos de ir a uma “fonte limpa”. Foi por isso que se dirigiu um dia ao senhor “Antoninho de Raimunde”, um afamado conhecedor da sabedoria popular que vivia em Raimonda, freguesia aquela distante do outro lado da serra que limitava o horizonte. Empreendeu-se a viagem num fim de tarde, alugando os serviços de transporte do taxi do Roberto, taxista que havia pouco comprara a praça do Sampaio do carro. 
Ao senhor Antoninho eram pelo povo atribuídos poderes algo sobrenaturais, fama conhecida por muito longe, dizendo-se que herdara de um padre certos dons para fazer o bem. Costumava receitar só remédios naturais, uns chás de poses embrulhados em tosco papel, umas pomadas preparadas, mais vinho fino quinado, entre outras coisas que costumavam dar resultado. E adivinhava as doenças, segundo o que o pequeno acompanhante foi ouvindo sua mãe e prima conversarem esperançadas. 
A forte ligação afectiva que sentia por aquela prima levava o atento pequeno companheiro, dessa como de muitas diferentes viagens, a dar consigo numa angústia, ansiando em crente prece infantil que tudo fosse como naqueles livros que ia buscar à camioneta que parava à beira da Casa do Povo. 

Habituara-se a andar com ela, porque a Glória começara por pedir à tia se o deixava acompanhá-la para não parecer mal ao povo nas suas constantes deslocações, por mor de ter de ir à vila buscar linhas e agulhas para bordar e fazer bainhas, como para levar a obra acabada às casas de bordo, cujos proprietários davam o serviço às bordadeiras servindo de intermediários nesse negócio de arte manual. Costumava, por isso, de lhe comprar rebuçados de jogadores, que ele tanto apreciava, e com o tempo outras guloseimas. Uma vez, para lhe demonstrar ainda mais afecto, comprou-lhe até um chocolate. Ora, como ele não gostava daquilo, mas com vergonha de ser desagradável, aconteceu que, tendo escondido no bolso dos calções aquela tabuazita de cacau doce, acabou por o chocolate derreter todo até que empastou o pano azul marinho. Foi com espanto gracioso que ela acabou por descobrir o acontecido, e ao mesmo tempo triste porque tinha vaidade na apresentação do primito. 
O seu feitio irradiava bem estar e facilmente fazia amizades. Todos gostavam da sua presença, ao ponto das raparigas dos lugares vizinhos virem todas para a frente de sua casa trabalharem à sua beira, onde ela bordava sentada num pequeno banco de madeira com as pernas cobertas pelo pano em que trabalhasse, junto ao murete do quintal da Casa do Clube, perto da Torre. Era um encanto aquele bando de andorinhas pousadas no chão do Paço de baixo, a rirem e contarem peripécias ao sabor da conversa de entretenimento, distraídas enquanto desenvolviam seus lavores. Até quem passava também parava a fazer parte da sociedade, e então rapazes era vê-los a fazerem passagens propositadas por ali, a tentarem a sua sorte empoleirados em suas bicicletas de punhos de guiador enfeitados com fitinhas de cores garridas, para dar nas vistas como era moda. Mesmo os primos que por ali andassem e rapazes da sua igualha, do mesmo tempo da escola e doutrina, gostavam de estar aí a passar tempo, sendo ela a chefe, por assim dizer, de todo o grupo do costume. Para os pais e irmãos era a alegria da casa, sendo ela quem mediava possíveis discussões de família, quem se metia a resolver problemas, notando-se a sua falta sempre que não estava.

Toda aquela vida despreocupada e feliz se alterou de um dia para outro. 
A viagem para a consulta com o senhor Antoninho decorreu taciturna. Subindo pelas Breias, levou um tempão a alcançar a tasca do Macedo, descendo-se depois pela Ermida sensivelmente à mesma velocidade. A calma condução do senhor Roberto fazia com que os campos e matas fossem vistos como que a acompanharem quase a passo os olhares rugosos, quão franzidas iam as testas de pensamentos. Também a conversação do condutor pouco ajudava, conversando mais a fazer perguntas para as quais ainda não havia respostas, de pouco bastando a consolação constantemente tentada pela tia da jovem, ainda que a sua confiança provocasse algum lenitivo. Ia-se já na estrada de ligação a Paços quando parou por fim o automóvel numa curva, acabando por se deter em terreiro fronteiro a uma loja de vendas, numa casa com portas abertas no rés do chão. Chegado assim o termo daquela viagem decorrida com ansiedade, apressaram-se todos em direcção à loja do afamado consultor popular. 
Mal assomaram à porta, aquele ancião clamou - sem que ninguém lhe houvesse dito nada nem ele visse o que fosse, para pasmo de quem o ouviu - que não havia remédio. Tinha um cancro. O mal era fatal. 
Desatou em pranto a dorida, inconsolável. O pequeno assistente, atónito mas sem perceber a gravidade, reparou ainda na rusticidade do estabelecimento, uma loja de venda de produtos domésticos, mercearia e drogaria, segundo se julga lembrar. Numa das prateleiras sobressaía uma estatueta negra de aspecto pouco atraente. A imponência do senhor Antoninho, separado dos visitantes por balcão rústico de madeira pintada a castanho forte, metia respeito e temor. Ainda foram colocadas umas perguntas, com seu quê de tentar dissipar algumas das muitas dúvidas, mas debalde pois o mal já não era de médico nem de habilidosos, conforme disse. 
Restava o quê ?! 

Passado tempo, e depois do cruel golpe do primeiro embate, com toda aquela antiga jovialidade numa vida transtornada, a Glória ainda foi para Lisboa tratar-se. Como enquanto há vida se mantém a esperança e ninguém, num casos destes, quer acreditar na verdade, agarrou-se à vida como pôde. Chegou a ser operada, ficando-lhe um grande corte abaixo das costelas. Sucederam-se as promessas piedosas por tudo quanto era gente sua amiga e pela própria. Num dos casos a Glória foi a Fátima no cumprimento de não falar em toda a excursão, mas num momento de infelicidade, ao acordar de ligeiro sono em que descansou no seu assento da camioneta, acordou estremunhada pelas conversas a seu lado e inadvertidamente, movida pela curiosidade natural, aconteceu perguntar algo ao namorado a propósito do que ouvira.... passando o resto do passeio a chorar. 
Tudo o que lhe ia acontecendo não a afrouxava todavia. 
Depois, entre o limbo da maléfica doença, casou. 
O seu casamento foi acontecimento importante para a família, metendo pais, sogros, irmãos, cunhados e cunhadas, tios, primos, amigos, vizinhos e conhecidos, sem faltar presença de companheiros de fábrica do noivo. Tornou-se num autêntico arraial o adro da igreja, de alegria efusiva dos convivas. A noiva ia mais linda que nunca, com seu fato de casamento que conforme uso do tempo consistia de fato, saia e casaco, de fino tecido azul escuro, levando mantinha rendilhada branca na cabeça. À saída da igreja todas as suas companheiras se apressaram a lançar-lhe flores, arroz e miçanga por entre risos felizes que pareciam querer esquecer o que se temia. No terreiro da fonte de S. Tiago foram pelos convidados lançadas amêndoas para o meio das crianças, à mistura com coloridos confeitos, alguns dos quais se partiram contra o rodapé de pedra da Casa de Santiago – noutras eras casa da paróquia que serviu de residência aos abades de antanho e após venda de bens da igreja (na governação do ministro monárquico conhecido por “mata-frades”) passou a ser habitação de família abastada da freguesia, cuja escada de fora se salientava por gracioso S ornamental de remate ao lanço das graníticas caleiras, de acesso a pequena varanda quadrada coberta por telhado alpendrado a cobrir tecto de castanho; edifício de porte clássico, contendo na frontaria, ladeando as janelas, mísulas de pedra de antigo uso na seca de frutas e posteriormente poiso de vasos. 
Seguiram os recém casados à frente de grande acompanhamento, indo toda a gente a pé desde as Alminhas da Renda até ao Barbeito, casa que passavam a habitar e onde foi servido o banquete. No caminho esse cortejo de gente, metendo pelo Golfeiro para a presa de Pires, passeou a felicidade dos noivos por entre alegres instantâneos, antes de meterem as pernas debaixo das compridas mesas espalhadas pelo quinteiro, varandeu e sala, saboreando comidas a que poucos estariam habituados, nesse tempo, desde saborosa salada russa afagada de espessa e fresca maionese, acompanhada de filetes de pescada (temperados em “devinha d’alho a saber a limão), seguindo-se cozido à portuguesa e assado bem apaladado, até bolos dos mais variados tipos e pudins, graças aos dotes culinários da Glórinha Africana, conhecida daquele modo por haver servido em casa do Castro Africano. 
O pequerrucho companheiro da noiva nesse mesmo dia ainda foi motivo das atenções da prima, que ficou muito cismada ao ver que se lhe soltara o sangue do nariz, apressando-se a deitá-lo em seu regaço e transpô-lo carinhosamente sobre a sua cama, sem o largar enquanto o sangue não parou de deitar. Depois de acalmada a situação, sem que a maior parte dos comensais da boda se apercebessem tal o estado de euforia provocado pelas iguarias regadas com tintol, houve pé para música de harmónica, formaram-se grupos em animadas conversas na frescura da ramada e bardos de dentro e fora, beberam-se canecas a esmo de tinto a espumar nos rebordos de porcelana, enfim manteve-se animada festança durante toda a tarde. 

A merecida felicidade não durou muito, porém. Aquela casa rústica do ninho familiar ainda chegou a assistir ao nascimento de um filho, mas volvidos meses agravou-se a doença, acabando por se apagar o fio de vida. Acabou subitamente animado jogo de bola quando chegou a notícia ao recreio da escola da Longra... Estavam a decorrer cerimónias da vigília de Maio em Fátima enquanto se juntava muito povo da freguesia no velório... 
Houve emoção desmedida no enterro. Saído o caixão do remanso da casa em que viveu sua melancolia em alegria forçada, irromperam os sentimentos abafados. 
Perante a emoção do momento mais radical, alguém levantou uma das vidraças duma janela, erguendo-a num ápice sem tempo de a prender aos pedreses de borboleta, qual frémito de última despedida, e nesse instante ao debruçar-se sobre o peitoril acabou por fazer cair um pedaço de vidro que se partira com a comoção apressada. Só por milagre o afiado gume vidrado, espetando lá em baixo entre a gente, não matou redondo ninguém da multidão que seguia a passo no cortejo fúnebre. Ia lá também o pequeno acompanhante, como só ele sabe, pela última vez a acompanhar a prima por quem sempre manteria pura e suave recordação. 

Armando Pinto