Espaço de atividade literária pública e memória cronista

domingo, 30 de março de 2014

Costumes da Quaresma


Passado o período de folias de Carnaval, é tempo quaresmal de sossego até à Páscoa. Época que tradicionalmente comportava noutros tempos, por esta região Felgueirense, alguns costumes relacionados.

 Como se aflorou anteriormente, os excessos de Entrudo provinham de festividades populares de tempos recuados, realizando-se durante a romanização as Lupercais, antes das Calendas de Março, celebradas em honra de Pan, deus dos pastores - relacionando-se a denominação com Lupercus (do latino lobo). Ora esta festa anual estava associada a orgias e outras boémias, pelo que o Papa Gelasio instituiu, em sua substituição, a festa da Purificação ou da Candelária. Não tendo sido, porém, completamente extintos os festejos com os desmandos abusivos do Carnaval, passou depois essa festa religiosa a cingir-se ao dia, como também ficou conhecido, de Nossa Senhora das Candeias.

 Este dia, depois dos populares saberes de "Temperilhos e Remedilhos" (de previsão do tempo, associando o estado de cada dia a um mês respectivo, entre o dia de Santa Luzia, a 13 de Dezembro, e o Natal e, depois, em contagem decrescente desde o 26 de Dezembro até ao dia de Reis, a 6 de Janeiro), servia então o dia da Candelária, a 2 de Fevereiro, também de nova prova meteorológica, qual reforço de confirmação, pois, ao que se dizia, se nesse dia de Nª Sª das Candeias estiver de chuva, na voz do povo «Nossa Senhora a chorar, está o inverno a acabar», significando futuro clima ameno; enquanto que se «estiver a rir (fazendo sol), está o inverno p’ra vir»...que é como quem diz que vai sobrevir tempo invernoso com rigor.

 Assim o período mais reparador passou a verificar-se a partir do dia seguinte à terça-feira de Carnaval, numa espécie de água fria a arrefecer os ímpetos desenfreados. Este tempo começa então pela quarta-feira de cinzas.

 Não se trata, no caso, de nos determos sobre o tempo litúrgico propriamente, ido desde a quarta-feira de cinzas até quinta-feira da Semana Santa, de quarenta dias preparativos para a Páscoa. Apenas alusão sucinta de algumas das antigas tradições locais, como recordação de particularidades populares da maneira de viver noutras eras.

           Posto isso, guardadas as fantasias de Carnaval, chegava o tempo da abstinência, já que durante este período de nada valiam os pagamentos de “bulas” que se faziam para o resto do ano. Pairava ambiente rígido, pela religiosidade vivida, acrescido da preocupação de não se poder comer carne às sextas-feiras durante a Quaresma, chegando-se ao ponto de nas vésperas da abstinência se “escaldarem” as panelas para que não restassem nas mesmas quaisquer restos de gorduras.

           Passado algum tempo de penitência, sensivelmente a meio da Quaresma, possivelmente para atenuar o ambiente, aconteciam alguns cerimoniais de raiz popular. Como a “Serração da velha”, na noite de quarta-feira da terceira semana desse tempo quaresmal. Andanças nocturnas em que os novos iam “asserrear” as mulheres idosas junto às suas portas. Antes ou depois, mais precisamente em Março, no dia do Pai, que calha também dentro do mesmo período (seja baixa ou alta a altura do ano em que se calendarize o Carnaval e a quarentena que se lhe segue), havia ainda a “festa do cuco”, nuns moldes parecidos, apenas com a diferença de incidir directamente aos homens, cujas relações das suas mulheres eram faladas em sentido negativo. Pelo que, na dúvida da paternidade, ao que poderia andar no ar, o referido ritual popular fazia incluir crianças (transportadas com carrinhos de mão), a fim de serem distribuídas, por brincadeira, junto às casas de cuja reputação o povo falava... enquanto com galhofa, os participantes da marosca, sorrateiramente, imitavam o canto dos cucos.

            Lá para o fim deste período antigamente havia, sob o prisma religioso, ainda o rito das imagens dos santos nas igrejas estarem escondidas por panos roxos desde o Domingo de Ramos até ao Sábado de Aleluia, incutindo um espírito muito próprio à habituação do povo.

Nos dias de hoje são apenas assim cobertas as cruzes existentes no interior do templo, durante toda a Quaresma, com excepção de uma que é colocada em destaque junto ao altar-mor, contendo pendente dos braços uma faixa roxa a formar um M. Havendo, ultimamente, também colocação de uma cruz no exterior das igrejas, com uma ou mais faixas roxas, contendo motivos da Paixão Redentora - como ainda se pode ver junto à igreja de Rande, conforme registamos na imagem cimeira.

Época essa, de aproximação à Páscoa, em que noutras eras se realizavam, inclusive, ao ar livre autos da Paixão nalgumas freguesias, perante grande número de assistentes que, quantas vezes, de todos os anos presenciarem ou de quando em vez também participarem, sabiam mesmo de cor os papéis dos declamadores de textos normalmente feitos em versos.

Maneiras de passar o tempo que, entretanto, já passaram à história como celebrações típicas, comuns à região.

(Texto que, com algumas variantes e adaptações, foi entretanto já publicado no jornal Semanário de Felgueiras e noutras publicações, além de estar entre material para um futuro livro, há muito esperando viabilidade...)

Armando Pinto